quinta-feira, 19 de julho de 2012

Eterno replay de um gol contra*


Qualquer crise é apenas, no fundo, a projeção de nossa angústia existencial
Enrique Vila-Matas, Dublinesca

Confesso que, ao ouvir essa máxima do cineasta e aforista Alessandro Santana, fiquei meio que pasmo tanto com sua indignação em relação ao nosso eterno marasmo cultural provinciano quanto por conter um dos dados elementares da condição humana: a repetição. O que, psicanaliticamente, chamamos  de compulsão à repetição.
           
        Não pensem que vou insistir que apreendam este difícil conceito  psicanalítico que mesmo a Freud surpreendeu, não; antes tentemos visualisar o que título nos propõe: um gol contra que se repete eternamente. Talvez isso provoque um sincero esgar –– aversão instantânea. Entretanto, julgamos que, imerecidamente, repetimos infortúnios e situações desagradáveis ao longo da vida. Alguns pedirão: fale de modo mais direto sobre o que é essa repetição! Certamente. Não é incomum o sujeito, em um desabafo incontido, lamentar que mais uma vez cometeu erros que jurara evitar. Isto desde compulsões comportamentais, brigas, ira, encontros e desencontros amorosos; o pânico ocasional, mas nunca ausente de todo.
 Provavelmente, seja isso que o título nos evoque: um incômodo quase nauseante, pois não queremos saber que repetimos. Certa vez falei o aforismo a algumas pessoas e o efeito não me pareceu nada agradável, mesmo aos que não têm pendores futebolísticos, aliás nem precisava. Até agora tem parecido confuso o que falo, mas vejamos uma simples compulsão de lavar,  incessantemente, as mãos, por exemplo –– deixemos de lado o diagnóstico imediato, ligeiro, de toc (transtorno obsessivo compulsivo) ––  verifiquemos que não há uma justificativa higienista e racional para a execução insistente de tal ato, porém o executor, tomado por essa compulsão, nos apresentará inúmeras justificativas para seu ato de lavar as mãos. Então, perguntarão: por que se repete esse comportamento ? Alguns dirão, primeiramente, que se trata de alguma disfunção neurológica ou comportamental; realmente é uma saída mais fácil que buscar uma etiologia, causa, subjetiva (psíquica) para essa pequena repetição. Difícil aceitar, mas devo dizer que essa compulsão funciona para o sujeito, inconscientemente, como uma barreira, uma tampa, para que questões subjetivas suas não invadam seu pensamento consciente.

"Melhor é impossível"(1997) é um filme premiado com Jack Nicholson e Helen Hunt que trata das desventuras amorosas, compulsões e gols contra de um escritor renomado vivido por Jack Nicholson. Nessa película todo pequeno inferno neurótico está jocosamente descrito, já que se trata de uma comédia. As evitações, hesitações e atos mecânicos que o personagem realiza em seu comportamento podem nos indicar, detidamente, que eles servem também como bloqueio ao afeto em suas relações. O  ato compulsivo  evita, canhestramente, que  algo do ser do sujeito fique sob o sol. Caso o pensemos com mais atenção, o ato compulsivo repetido à exaustão, forma o que chamei de  barreira, de contenção, para que o indivíduo se aliene quanto a determinado afeto que não suporta em si e que o angustia no átimo de sua aparição. Paradoxalmente, o ser humano carrega em seu psiquismo o que lhe é familiar e estranho; sei que os céticos pensarão que tal afirmação é artimanha psicanalítica; porém  a estranheza que o sujeito pode sentir em si, já que julga não se conhecer totalmente, tende a levá-lo a procurar o que se denomina como auto-conhecimento. Direi que a psicanálise não trata disso, senão de um saber sobre si –– e não há aí  um tropeço tautológico**. Pois, a concepção de auto-conhecimento difere do que pode ser encontrado pelo paciente em um divã psicanalítico. Na tradição filosófica saber (do latim sapere) designa não apenas o conhecimento técnico, mas algo além que reside na aplicação da virtude.  
         
      Mas a compulsão à repetição freudiana não se restringe apenas a atos mecânicos do comportamento. Às vezes, a segura distância da posição de  mero observador possibilita que se enxerguem os impasses alheios com uma frieza quase científica; aí se pensa como o vizinho se envolve sempre no mesmo tipo de relacionamento que o desgasta, que o corrói, mas ele continua ali a rondar os bares, inferninhos da vida e neles capta sempre o mesmo tipo  de relacionamento, de encontro. O observador distante, por mais que julgue, guarda uma tranquilidade impassível, pois aquilo se passa apenas com o vizinho; porém as repetições daquele continuam ganhando livre curso por mais que não sejam percebidas por sua posição de circunspecto observador. O hábito pedante, renitente,  de citar filmes me impele a mais uma rápida referência cinematográfica: “ Feitiço do tempo ” estrelado por Bill Murray e Andie Macdowell, pois acredito que capta o que se pode entender por compulsão à repetição. Possível que alguns não aprovem essa referência para o tema da repetição, porém fica a cargo do leitor tecer suas considerações. Curiosamente, cito duas comédias ao me referir à repetição, talvez propositadamente ela tenha as facetas de sofrimento e de chiste, sendo tragicômica.    
         
       Em um corrosivo texto, um libelo, chamado “ A psicanálise verdadeira, e a falsa” Jacques Lacan  desfere duros golpes contra  a obscurantista perspectiva da psicologia do eu que centra seus recursos em prol da adaptação do sujeito a patterns comportamentais e sociais –– evidente depauperamento humanístico e existencial. Também, já em relação à compulsão à repetição, Lacan declara que “ (...) descoberta por Freud, foi também por ele identificada à insistência de uma verdade de que continua a clamar no deserto da ignorância”¹. Para que talvez algum saber, sobre o inconsciente, vencesse o deserto da ignorância de si, do comodismo da existência, eis o objetivo da causa freudiana que não deve ser confundido com terapias que colocam um tampão sobre a fenda da subjetividade –– o inconsciente.
          
     Inegável que um gol contra ainda é um gol, não deixa de ser uma realização por mais incômoda que possa parecer –– como uma repetição amarga que insiste para que o novo apareça e aflore como saber. Não raro, a pessoa procura um consultório de psicanálise por não mais suportar suas “repetições” que chamamos de sintomáticas; ali a fala, guiada pela técnica analítica, possibilita que certa porção da repetição do sujeito se desate para o novo –– algum apaziguamento ante o que se repete e o que se é.      
         
    Os aforismos de Alessandro Santana deveriam ser editados em folhinhas de calendário para que propiciassem certa reflexão matinal. Talvez essa tornasse o desjejum um pouco indigesto tanto quanto a subjetividade nos tempos  da medicalização maciça e do higienismo comportamental.


 * Texto publicado no site do jornal Cinform online em 2010.
**Tautologia: vício de linguagem que consiste em repetir o mesmo pensamento com palavras sinônimas.
¹ Lacan, J. Outros escritos. 2003.